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TEXTS

 

Nunca fui capaz de construir uma casa

Exposição individual - Galeria S. Mamede, Porto

março 2023

 

A frase é do arquiteto Álvaro Siza, que considera a casa uma máquina complicada:

"Nunca fui capaz de construir uma casa. Não me refiro a projectar e construir casas, coisa menor que ainda consigo fazer, não sei se acertadamente. A ideia que tenho duma casa é a de uma máquina complicada, na qual em cada dia avaria alguma coisa: lâmpada, torneira, esgoto, fechadura, dobradiça, tomada, e logo cilindro, fogão, frigorífico, televisão ou vídeo; (...)" (Álvaro Siza apud Guerrero, 2011: 25)

Ainda não inventaram um guião para construir casas que faça com que seja infalível todo esse processo de criar o abrigo de alguém, qual função nobre e de grande responsabilidade, ao mesmo tempo poética e, como diria Ernesto de Sousa, criação de raiz umbilical, aventura, sótão, voo possível, terraço, copa densa e viva.

Não há o guião de criar a fortaleza de alguém de modo a não chover lá dentro, não abrirem frinchas, frestas, fendas ou fissuras, não cair a porta de um armário por estar mal colocada a dobradiça, não entrar humidade pelos poros da pele da casa, não se sentir uma brisa de tão pobre isolamento, soalhos que levantam do chão, e logo a inspeção e a caixa das águas que está uma confusão. Não foi ceresitado, que rufos são estes, de baixo para cima nada está bem, os canos estão tão estreitos, não dá para descarregar. As tomadas estão tortas, a madeira afinal não é maciça, troca o vidro por policarbonato, olha a campainha que já deixou de funcionar. É preciso ligar ao picheleiro, ao carpinteiro, ao eletricista, ao senhor das persianas, mas espera, que estas profissões estão em vias de extinção. E depois, como vai ser? Onde vamos morar?

Não inventaram o guião para construtores para que não avarie cada dia uma coisa desta máquina complicada. E então, na casa desesperamos, mas também amamos, ficamos, rimos e sofremos, dançamos, cozinhamos e chamamos para a mesa.
A casa é um lugar íntimo, o lugar por excelência que carrega em si a intenção de sobrevivência, de regresso, de segurança. Estar em casa ou ir para casa são expressões do quotidiano que denotam a importância que a casa assume enquanto contexto protetor, contentor e apaziguador. É lugar de rituais, de relações familiares, reservatório para memórias de infância e um ponto para a construção da intimidade. Diz Ruy Belo que “Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade”. E é nesta intimidade que pinto as casas imersas em utopia, irrealidade e desproporção, à medida que alio essa ideia de habitação impossível à de lugar para viver.

Ao longo dos anos tenho desenvolvido este fascínio pela casa enquanto lugar primordial e parceira no processo de desenvolvimento das relações humanas, igualmente elemento formal e conceptual de enorme riqueza e profundidade. Todas as pinturas querem ser arquitetura por isso mesmo, não abandonando o seu ser pintura, principalmente através de um igual fascínio pela cor e pelo seu potencial transformador e provocador dos sentidos. A intersecção deste jogo cromático com linhas infinitas e desenfreadas de construção de uma geometria errada mas sedutora compõe as paisagens e os lugares que pinto. Alguns são espaços interiores conectados com uma ideia de intimidade, outros são espaços exteriores conectados com uma ideia de paisagem e o modo como esta se transforma com a arquitetura, a edificação e a intervenção humana. O suporte da pintura surge ele mesmo como excerto de arquitetura, por vezes fragmentado, por vezes oblíquo,

por vezes volumétrico e invasor do espaço real. Há também os pequenos guias para construtores, onde o desenho e a colagem projetam casas ou maquetes de casas enquanto essas máquinas difíceis de fazer funcionar na perfeição. Podemos escolher uma para morar. Mas, na verdade, nunca fui capaz de construir uma casa e qualquer uma destas é falível e frágil, acentuando a vulnerabilidade do próprio ser humano. Por isso, fiquemos com as cores, que na verdade fogem ao meu controlo depois de residirem num campo de interação mutável e de excessivas condicionantes ligadas à perceção. A luz, por exemplo, pode estar diferente hoje mesmo. Era Barnett Newman que fazia uma clara distinção entre as cores e a cor: as cores são algo que pode ser comprado por qualquer pessoa e espremido de um tubo de tinta; a cor é aquilo que o artista faz a partir dessas cores. É, de facto, muito raro eu usar uma cor diretamente do tubo de tinta. Faço as minhas cores, misturo e misturo e procuro, e sinto que se as quisesse repetir, uma a uma, estaria condenada ao fracasso. A pintura torna-se, assim, irrepetível, partindo de um processo absolutamente intuitivo e condicional exigido por ela mesma segundo a segundo. Foi Roland Barthes que afirmou que, se fosse pintor, pintaria apenas cores. Talvez seja essa liberdade e autonomia aliados ao impulso de fazer cores que podem, enfim, ajudar-me a aprender a construir uma casa de raiz, sem que caia, ceda, quebre ou se avarie, continuando a ter onde morar e a dar a ver moradas, moradias e lugares para ficar.

 

Ana Pais Oliveira

março de 2023

 

Vários tipos de vazio

Exposição individual, Galeria S. Mamede, Lisboa.

abril 2022

Nesta exposição, volto-me para dentro. Apresento, sobretudo, espaços interiores. Serão, talvez, os espaços que, aos nossos olhos, e nos últimos dias somados, se adensaram em familiaridade, imposição e entorno de todas as esferas. É neles que cabem a ausência, a perda, a invisibilidade, o afastamento entre pessoas, o impasse e a espera. Mas também uma sensação de segurança, de possível recomeço e de procura de liberdade: o espaço vazio e o silêncio são sempre pontos de partida para todas as possibilidades.

Neste conjunto de pinturas, desenhos e colagens o espaço é, efetivamente, silencioso, enquanto nos abriga em tempos de vários tipos de vazio.

O vazio é, em si mesmo, matéria de trabalho, matéria construtiva e força preceptiva. Pode ser matéria para a pintura e a composição, para a sobreposição de camadas de cor e de sentido, para modelar, dar a ver, interpelar ou intercalar. Pode ser intervalo e pausa, mas também densidade e força. Pode ser o espaço entre coisas, o ar desfeito, uma frecha, o silêncio, um ponto de luz, a esquina dobrada, as janelas abraçadas à curiosidade e ao distanciamento, a ausência de pessoas e dos objetos que lhes pertencem. Pode, também, ser espaço psicológico ou existencial, um modo de distorção espacial, de questionamento da utilização convencional dos lugares e de provocação de um estranhamento e desconforto. Pode ser material físico em confronto com uma aparente imaterialidade e uma disfunção da própria construção, edificação e sentido de casa.

A casa também é um conceito abrangente de uma forma de sentir e de uma emoção: ir para casa pode ser ir para o nosso país ou para a nossa terra. Procurar um conforto muito específico e intransponível para outros lugares. A casa é lugar de rituais, de relações familiares, reservatório para memórias de infância e um ponto único para a construção da intimidade. É parceira no processo de desenvolvimento das relações humanas. É conceito geográfico e social com significados ideológicos e simbólicos, contribuindo para a construção da identidade de uma nação ou para a nossa identidade individual. Por outro lado, a casa, ou a ausência dela, torna o ser humano vulnerável. Por não ser perene ou indestrutível, por também viver e morrer, caracteriza e intensifica a nossa fragilidade. A casa, com efeito, pode desalojar ou desamparar, pode esvaziar-se das suas coisas, pode tornar-se inóspita para os seus habitantes. Pode desaparecer. E, enfim, o maior vazio de todos pode ser o da ausência de um lugar para morar. Nenhuma casa nos pode proteger da ausência de paz e é aí que reconhecemos a sua fragilidade e, portanto, o seu lado quase humano, falível, frágil e não perene.

Em “Vários tipos de vazio” a pintura explora uma dinâmica da forma visual que tem qualidades genéricas como a rigidez ou a flexibilidade, a expansão ou a contração, a abertura ou o encerramento, qualidades igualmente inerentes à mente humana. O espaço, em si, é uma entidade dinâmica que não pode descurar a sua relação com a pessoa que o perceciona, sente e ocupa. O ponto de vista móvel do observador, em relação a estas pinturas, está alicerçado num corpo em movimento e este é determinante da forma como nos relacionamos com o objeto artístico. E, também aqui, há inúmeras possibilidades de entendimento, perceção e fruição. Podemos passar, parar, espreitar, entrar, contornar, debruçar, aproximar ou afastar, mantendo um comportamento coreográfico. Afinal, também se dança em dois metros quadrados.  

 

Ana Pais Oliveira, 2022

 

Pais Oliveira, Ana (2015) A cor entre o espaço pictórico e o espaço arquitectónico: processos relacionais nas práticas artísticas contemporâneas. Tese de Doutoramento em Arte e Design - Pintura apresentada à Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.

 

Resumo

 

A razão e origem deste trabalho de investigação parte da natureza particular da minha prática artística e dos propósitos e questões oferecidos pela pintura. De modo consequente e primordial, e como resultado da componente processual da pesquisa, pretendo criar um corpo de trabalho pictórico inédito capaz de introduzir e evidenciar os resultados de uma continuada interdependência entre o pensar e o fazer. Pintura fora de si, designação que explicito ao longo do texto e que nomeia o projeto expositivo final, refere-se ao disseminado conceito de pintura expandida mas, aqui, e mediante uma aceção talvez mais poética ou subtil, refere-se à pintura que deixou de estar bem na sua pele e de se identificar com os convencionais modos de a definir, traduzir ou mostrar, pedindo emprestadas gramáticas vizinhas. É uma pintura que avança no sentido da pesquisa espacial, da tridimensionalidade e da invasão do espaço real, mantendo-se fiel ao seu ser pintura. No entanto, e no final dessa viagem, regressa sempre aos seus meios, processos e questões, tentando comportar-se com honestidade e confirmando a sua inesgotabilidade.

A investigação propõe um olhar para o lugar da cor nas práticas artísticas contemporâneas onde a pintura conversa com a arquitetura, particularizando os objetos artísticos que, de algum modo, intersetam as especificidades de ambas. O enfoque do trabalho não é, assim, a cor como tema abrangente e propenso a uma multiplicidade de aproximações, mas a cor conectada com um processo simbiótico entre a pintura e a arquitetura, onde existe uma mútua problematização e hibridização. De um modo geral, a dimensão pictórica prevalece, como resultado de um privilégio dado à cor enquanto elemento visual e expressivo com um significativo potencial transformador.

O estudo que contextualiza a presente investigação coloca a questão sobre o que aconteceu à cor depois das teorias que a procuraram sistematizar, sendo que estas não chegaram a disponibilizar um conhecimento inequívoco e irrefutável, mas sim a gerar mais possibilidades de conflito, disrupção e reinvenção. A cor, hoje, está mais associada a um campo fluído de aleatoriedade, acaso, experimentação e intuição, do que a uma vertente científica, sistemática e de uma gestão ordenada de princípios e regras. Por outro lado, no seu cruzamento com a específica relação intertextual entre a pintura e a arquitetura, a cor surge comummente como um interface que potencia o resultado artístico das crescentes relações de colaboração entre artistas e arquitetos.

Esta investigação procura evidenciar os casos em que a cor, que permanece indisciplinável e indomável, assume um papel primordial nesse anulamento de fronteiras entre a pintura e a arquitetura, cruzando as propostas de artistas ou arquitetos que operam, no conjunto dos seus trabalhos, questões, temas ou processos coincidentes com os da minha prática artística e com os deste estudo. Prevalece, finalmente, a utilização da cor como experiência: uma experiência física e intuitiva inerente ao ato de fazer, de aproveitamento efetivo e afetivo do erro, da possibilidade e da incerteza. Em última instância, atravessa este texto-investigação um argumento em defesa da pintura, que sobrevive independentemente das estratégias que utiliza para dar forma a uma ideia.

 

Ana Pais Oliveira

setembro 2015

 

 

Abstract

 

The reason and origin of this study is found in the particular nature of my artistic practice and in the purposes and questions brought about by painting. In a consequent and paramount sense, and as a result of the procedural component of this research, the intention is to create an unprecedented pictorial work that is able to introduce and emphasize the results of a continuous interdependence between thought and action. Pintura fora de si (Painting outside itself), a designation that will be explained throughout the text and is the title of the final exhibition project, refers to the disseminated concept of expanded painting. In this case, however, and perhaps in a more poetic and subtle sense, it refers rather to the painting that has ceased to feel comfortable with itself and recognize the ways in which it is conventionally defined, translated or portrayed, borrowing nearby grammars. It is a painting that moves forward in the direction of spatial research, tridimensionality and the invasion of the real space, remaining faithful to its painting being. Nonetheless, at the end of such journey, it always returns to its means, processes and questions, attempting to behave honestly and confirming its inexhaustibleness.

This research suggests looking at the role of colour in the contemporary artistic practices where painting converses with architecture, particularizing the artistic objects that, in some way, intersect the specificities of both areas. The focus of this paper is, thus, not on colour as a comprehensive topic prone to a multitude of considerations, but on colour connected to a symbiotic process between painting and architecture, where there is mutual questioning and hybridization. Generally, the pictorial dimension prevails, as a result of colour being privileged as an expressive and visual element with a significant transformative potential.

The study supporting this research questions what happened to colour after the theories that have tried to systemize it, for these have yet to provide an unequivocal and irrefutable knowledge, generating instead further possibilities of conflict, disruption and reinvention. Colour is, nowadays, more associated to a fluid randomness field, to chance, experimentation and intuition, than to its scientific and systematic aspect of an orderly management of principles and rules. On the other hand, in its intersection with the specific intertextual relationship between painting and architecture, colour is commonly seen as an interface that empowers the artistic result of the increasing collaborative associations between artists and architects.

This research aims to bring to light cases where colour, remaining undisciplinable and untameable, takes on a leading role in that annulment of boundaries between painting and architecture. It will do so by crossing the propositions of artists or architects who, in the course of their work, operate questions, topics or processes that coincide with those of my artistic practice and of this study. In the end, the use of colour as an experience prevails: a physical and intuitive experience inherent to the act of doing, of effectively and affectively using error, possibility and uncertainty. Lastly, this research paper is entirely imbued by an argument in defence of painting, which survives regardless of the strategies it uses to give shape to an idea.

 

Ana Pais Oliveira

september 2015

 

 

 

 

 

Pais Oliveira, Ana (2015), Pintura fora de si (ou algumas soluções de habitação), texto para a exposição individual - Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante, Abril 2015

 

 

Este é um texto que existe como resultado da existência da pintura. Esta vem primeiro e pode existir sem a palavra, embora não sem o pensamento. Se escrevermos sobre o que vemos, a palavra será clara, reta, deixando um registo imutável e constante,  mesmo que o ponto de partida original se mantenha em estado de trânsito, em consecutiva mudança e cedência às ações externas que nela se projetam. Mas se não escrevermos sobre o que vemos, talvez se ofereça a possibilidade de alargar os sentidos e de a obra ser, ela mesma, enriquecida, alargada e impregnada por estes. Aqui, a obra torna-se volumétrica e densa pela adição, sobreposição e contaminação de sentidos. Entre o escrever e o não escrever, nunca se questiona o pensar ou o não pensar. A pintura pensa-se a si mesma enquanto se faz. É através do fazer, da vivência do atelier, da ocupação física, efetiva e afetiva desse espaço e do confronto urgente e insistente com a pintura que produzo o objeto, um processo que resulta de um ciclo de pensamento, ação, experimentação e subsequente transformação. Depois disso, a escrita pode ter a capacidade ativa de potenciar e relançar a pintura, talvez colocá-la num outro lugar.  

 

Pensei em não escrever nada sobre esta exposição, mas escrever sobre a minha pintura é uma exigência que a própria pintura reivindica para si, querendo ver-se como que entendida e arrumada por momentos. Escrevo, quase sempre, depois de a pintura estar terminada. Mas esta é, muitas vezes, autorreferencial e afogada no seu próprio ser, sendo pouco mais do que ela própria, não precisando dessas palavras para sobreviver. Deste modo, as palavras podem vir contaminá-la ou acrescentar coisas que a pintura não tinha pedido para si. Ainda assim, escrevo como tentativa de a prolongar e de dar a ver os meus sentidos para a obra.

 

Pintura fora de si (ou algumas soluções de habitação) é uma exposição que pretende pensar ou falar um pouco mais sobre a identidade da pintura. A pintura está e estará sempre em questão e lida continuamente com a sua quase impossibilidade. Desde que a pintura morreu, renasceu em todos os momentos seguintes, sob vários modos de existir, renovando as suas possibilidades. Neste momento, é uma missão absolutamente inútil guardar os modos de produção dos objetos artísticos em gavetas estanques e de ângulos retos, duros e impossíveis de dobrar. Um objeto pode ser pintura, escultura, desenho e instalação em simultâneo, talvez sem ser nenhum deles, podendo ainda apropriar-se de especificidades de áreas como a arquitetura, modos de dizer que gostava que fossem seus. Em todos os casos, a pintura sobrevive e o seu questionamento resulta na contínua valorização daquilo que ela é e sempre foi.

 

Nesta exposição, todos os trabalhos arrumam em si mesmos as especificidades da pintura, ou são contaminados por um ser pintura, independentemente dos caminhos que tomam para dar forma a uma ideia. Entre os volumes de pintura que se afastam timidamente da parede, as peças tridimensionais que também não arriscam sair da parede e um único volume tridimensional que ganhou coragem e saltou para o chão, estamos sempre, primordialmente, mediante pintura. Claro que a pintura chama, para si, coisas que gosta de ver na escultura ou na arquitetura, como se por momentos as invejasse, embora logo de seguida se lembre que estar fora de si é um estado de enorme ansiedade e desconstrução identitária, que mais vale regressar a si mesma e comportar-se com honestidade. Aí, a pintura fica consciente de si, voltada para os seus próprios meios, processos e questões. Pode parecer não estar bem onde está, pode viajar e procurar pontos de fuga inesperados, mas regressa sempre a si mesma.

 

A derivação tridimensional da pintura concretiza-se, assim,  na escolha dos suportes, na sua expansão, na articulação de uma linguagem arquitectónica apropriada para o espaço pictórico com uma sugestão de bairros habitacionais quase experimentáveis e com a ideia de casa. Podemos escolher uma obra e usá-la como contexto vivencial alternativo, aceitando as sugestões de habitação.

 

Há, ainda, os desenhos, que como forma de pensar o espaço, a paisagem e a arquitetura, e de transmitir essa reflexão para o ato de riscar, são também pintura. Talvez possamos pensar que a cor assume um papel fulcral nessa ação de impregnar qualquer trabalho com um caráter pictórico, pelo seu potencial transformador no modo de desenhar e estruturar o espaço. A cor é sempre o elemento visual e expressivo primordial que compõe o meu trabalho, orienta a sua gestão e construção, transforma significativamente o espaço, a paisagem e a gramática da arquitetura. É assumida como experiência e unidade autónoma e, à sobreposição de camadas de cor e tinta sucede-se um olhar que decanta e tateia, um olhar que experimenta e procura saber. A cor oferece campos ambíguos de percepção, engana enquanto diz.

 

Parece-me, no entanto, que nesta exposição ameaço começar a esvaziar-me de cores, prevalecendo, por vezes, o branco. Não consigo pintar sem a tinta branca e raramente me desfaço da opacidade. Já a cor branca, assumida e mostrada na pintura, muito provavelmente estará lá para nos mentir e fazer ver o que não é. Se calhar, se houver algo que seja mais claro do que o branco, será a palavra. Eu posso escrever sobre o branco e isso será mais claro que a própria cor, que nunca é o que parece, que reflete a ação e conectividade das outras cores e, no fundo, todo o seu entorno e envolvência.  

 

Nesta exposição, a pintura mostra-se nos campos da intertextualidade, contaminação de linguagens, intuição, erro e experimentação presentes nos mecanismos de criação associados à prática da pintura e a um processo criativo que privilegia as relações cromáticas e a inquietude e êxtase a elas associados. Talvez se mostre, ainda, na beleza e no prazer de olhar, que podem e devem ser contemplados na experiência estética, na nossa relação com a pintura, embora sejam questões menos faladas. Em conversas e escrita sobre pintura, talvez haja a necessidade de repensar e falar sobre esse papel de provocar emoção, assumindo o prazer experimentalista e formalista da pintura. Abandonar conceitos, processos, dispositivos, tecnologia, posicionamentos. Falar de beleza. A pintura, como objeto com a capacidade de falar e explicitar o pensamento, tem também a capacidade de seduzir. Mas, aqui, posso ser eu a estar fora de mim.

 

Ana Pais Oliveira

abril de 2015

 

 

Sousa, Rocha de (2015), Ana Pais Oliveira - Pintura fora de si, in Jornal de Letras, 15 a 28 de Abril de 2015, p. 24.

 

Não é a primeira vez que me encontro com a pintura de Ana Pais Oliveira, um rigor projectual que existe pela geometria e na orgânica cromática, sem abdicar, no melhor sentido, das proximidades de diversos géneros — do desenho arquitectónico à pintura contextualizada, jogo perceptivo entre o que é cenário de fundo, plano, liso de cores congruentes, quase sempre frias, e a complementaridade finginda do espaço tridimensional.

          Ana Pais toma também a seu cargo reflectir sobre a sua pintura, organizando o pensamento nos quadros de referência da sua actual exposição e nos modos como  cada obra se exprime. Ao evocar o texto dessa reflexão diz-nos que ele “existe como resultado da existência da pintura”. Considera, e bem, que a pintura emerge primeiro, nas suas variações desde o início em cada caso. Ou, como diria Picasso, a pintura é uma soma de destruições. Ora esta pintura, no estado antecedente, pode, em parte por isso, existir sem a palavra, mas nunca sem o pensamento. No fundo toda a arte acontece um pouco assim : a vírgula, que sinaliza o ritmo e o sentido, vem depois da palavra (em princípio) e vai conferindo fala, discurso pensado, a um texto a fazer-se.

          Mas tudo isto acontece, quase sempre, da nossa experiência perceptiva, o quadro que decorre do visível, acercando-se, através da mobilidade visual, das coisas expostas ou pressentidas, consoante as condições de luz, a passagem e a paisagem, em ambiguidades contextuais nos ruídos que tantas vezes atrapalham a selectividade do ver. Ao espalharmos uma certa quantidade de tinta na tela, geramos um primeiro efeito expressivo, ou seja, uma primeira destruição — cortada a unidade minimal do suporte através da porção de tinta, displicente, mais ou menos central, azul cinza, por exemplo. O que então acontece na nossa mente, mesmo sem ideia preconcebida (esboço, projecto) é um forte apelo do fazer através da soma de outra mancha ao binário branco-azul cinza. Há resoluções formais que podem começar assim e acabar pouco depois. A pintura, como refere Ana, “pensa-se a si mesmo enquanto se faz”. Parece um lugar comum; mas trata-se de um trabalho mais complexo do que parece nas formulações simples e, no caso da pintura de AnaPais Oliveira, há atrás dela várias camadas da aprendizagem, muita oficina, e o apuramento técnico do encontro das fases, algo que se presta a receber o nosso olhar, a condensar a nossa percepção, a juntar sucessivos planos limpos em patamares invisíveis e muros planos, articulados como qualquer ideia próxima (e ao mesmo tempo ficcional) da arquitectura. O que tem condição bidimensional pode dar, a seguir, avanço tridimensional a outro plano ou efeito plástico meio silencioso, limpo, pronto a ser mais do que parece.

         Ao comparar estas obras da Ana Pais entre si (a semelhança na diferença), reli como tudo acontece ali “pelo fazer, pela vivência do próprio atelier, pela ocupação efectiva e afectiva desse espaço de um ciclo de pensamento, acção, experimentação e subsequente transformação.”

 

        PINTURA FORA DE SI COMO

        Para quem acumula uma larga memória do experimentalismo da arte dos nossos dias, da arte contemporânea, é muito pouco provável que olhe estas obras da Ana Pais Oliveira sem se deter e sem cuidar da pesquisa percepctiva com toda a atenção. Num caso assim, é possível que o observador se lembre de muitos casos da arte abstracta, gestual ou abstracta e geométrica. A diferença pode, além do mais, decorrer do impacto com as harmonias sem nome, dos planos rigorosos, entre    linhas brancas e fundos azuis, enquanto tudo se entrelaça à maneira de caixas, transparências, restos do que insinua a areia, um areal no lugar do céu – se paisajarmos a qualidade tridimensional dos planos enviesados e das linhas oblíquas.Um esplendoroso quadro de outro mundo, entre a máquina e a mente que  o dirige do infinito.

        Este é apenas um exemplo, abordado sinteticamente, mas, em boa verdade, muitas destas recepções de leitura são encontráveis nas outras peças que conheci agora, em pleno racord com peças de 2014. E é verdade o que diz a Ana: “todos os trabalhos arrumam em si mesmos as especificidades da pintura, ou são contaminados por um ser pintura”. Para além dos caminhos que tudo vai tomando à cadência da análise visual e técnica. O imaginário, embora condicionado por uma certa forma e por pessoais memórias perto destas complexidades poeticamente de amanhã, assume espaços arquitecturais, mecânicos, de realidades ainda não pousadas as nossos pés. E assim a pintura sai fora de si, trazendo-nos co ela máquinas do tempo ou arcas de Noé.

 

Cardoso, António (2015), Ana Pais Oliveira, "a poética do habitar" e os mecanismos da criação, in Catálogo da exposição Pintura fora de si (ou algumas soluções de habitação), Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante, Abril-Junho de 2015, Edição Câmara Municipal de Amarante, ISBN 978-989-8141-58-3.

 

Já, distantemente, Michel Ragon se interrogava sobre a Arte e o seu fazer, tentando encontrar justificações de carácter burguês ou proletário, ou utópico. Assim se batia sobre a tirania do útil (dos "utilitaristas"), o peso das vanguardas, aproximando-se, às vezes, da "morte da Arte", de Hegel, mas deixando, na escapatória, sequer, o conceito salvífico de espiritualidade/conhecimento e no quadro, ainda, da Sociologia.

 

Na linearidade das gerações, ou nas alternâncias, ou nas rupturas dos discursos emergentes é possível tentar enquadrar os trabalhos de Ana Pais Oliveira, agora expostos, já num primeiro olhar visto, nos últimos anos, no passado Prémio Amadeo de Souza-Cardoso.

 

Então, mostrara-me sensível a um minimalismo/construtivista, apelando à hierarquização das linhas, a símiles construtivos, a ver com a Arquitectura e volumetrias, na direcção, sobreposição e contaminação de sentidos.

 

Aí se articulavam os planos com uma miscegenação de formas recortadas ou coladas em diferentes fazeres ou sub-tempos, quase lúdicos nos sub-textos.

 

Julgo não ser abusivo aproximar as obras da Autora de uma dinastia de Mestres do pensamento que se aproximaram da "casa" e do seu "habitar". Ao "habiter en poéte", de Heidegger, associa-se filosoficamente a "casa como estado de alma..."

 

Também Gaston Bachelard se debruça sobre "a poética do espaço" e não deixa de ser propositivo que "toda a obra de arte ou construção intelectual, filosófica e mesmo científica é uma casa"...

 

De resto, persiste, como parece ter de ser, o "bazar contemporâneo" de Catherine Millet e tantos mais...

 

Pais Oliveira, Marta (2015), Sobre o dia em que entornei a beleza inteira, in Catálogo da exposição Pintura fora de si (ou algumas soluções de habitação), Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante, Abril-Junho de 2015, Edição Câmara Municipal de Amarante, ISBN 978-989-8141-58-3.

 

Sobre o dia em que entornei a beleza inteira

 

 

Ameaço olhar melhor a luz

e ser da altura do telhado

sabendo que o que é erguido, cai

e se caiu, foi antes erguido

como esta casa.

Se há relâmpago estoirando

fico debaixo da mesa

em frente à pintura

experimentável

contornável

trincando a alegria de

poder ainda responder a tudo.

É maior do que o escuro

(e se a gravidade o permitir)

quer sair da parede

trepar os pés

e chegar às nuvens,

- imensa -

ou outro sítio qualquer

acima do azul e

das casas de ancas largas

que dão à luz.

São por inteiro

com gente dentro,

sem gente nenhuma

e beijam de olhos abertos

- os olhos nunca se fecham –

ao respirar, suar

tão arquitetonicamente disfuncionais

como as nossas cabeças

e eu que enfim

 

perdi a chave

e o corpo na gaveta.

Tu em telas nuas

ensaias nascer,

talvez dançar, morrer

e sabes que há perigo

desde o começo

porque o calor passa

mesmo se a porta severa

está aberta

e deixa entrar tanto sol.

São riscos de aço luzindo

e eu aqui exposto

em subversão

ou desconstrução

mas onde estão as coisas?

Entornei a beleza inteira.

Talvez lembre que um dia disseram

assim:

se a vela lança uma chama mais alta

no momento em que se vai extinguir,

as casas mudam de cor

e são raras,

nunca te esqueças que

finitas e profanas

como nós.

 

Ruiu o teto

e sou frágil

na parede.

 

Sousa, Rocha de (2015), Ana Pais Oliveira - A casa, entre o erro e a sedução, in Catálogo da exposição Pintura fora de si (ou algumas soluções de habitação), Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso, Amarante, Abril-Junho de 2015, Edição Câmara Municipal de Amarante, ISBN 978-989-8141-58-3.

 

Cada gesto com tinta sobre a tela, feito de acaso, não é um erro nem uma certeza, é mais uma decisão, é sobretudo uma decisão.  Essa ocasionalidade resulta do modo de formar que o pintor assume.  A  pintura que Ana  Pais  Oliveiraeipratica,  plano a plano, entre tintas lisas, linhas concretamente orientadas no espaço, oblíquas  sugerindo a tridimensonalidade, tudo isso apronta dimensão a lugares precisos, menores, dobrados, além da sugestão das redes metálicas, a par dos contactos direccionais e da ideia construtivista das somas gerais de cada obra. Esta pintura, fingindo um projecto em vias de produção da forma, lembra também a fragilidade lírica e cénica do arranjo ilusório.

              A pincelada e a letra, a mancha e a palavra — eis uma aparente elementaridade que nos sugere, na prática conceptual, a íntima relação entre processos estruturais de perceber os múltiplos caminhos do fazer e do pensar. A pintura aparece antes da palavra, do seu discurso. Mas se a pintura, como nos dizia Picasso, é uma soma de destruições — esse caminho indica modos de formar em que, a cada impulso ou registo, tanto se pode absorver o erro e avançar, com ele, no caminho de novos achamentos. A primeira linha/tinta com que maculamos  uma  tela pode inserir uma qualquer totalidade exacta, ou seja, simular o erro da rasura. Contudo, é aqui, entre erro e rasura, que se esconde muitas vezes o sentido da verdadeira sedução. A tela suporta planos e ângulos da oficina, da casa que nos cerca, da luz e da sombra que nos envolvem.

            A arte contemporânea tem desvendado largos espaços  e novas expressividades aos operadores dos cenários urbanos, dos interiores intimistas, dos novos ritos e efémeras performances.  Os novos modos de formar contextualizam dados em contradição, consensualizando a inserção de processos monolíticos noutros de sentido plural. Nunca o olhar foi tão solicitado e nunca a mobilidade do ver se tornou centro de  saberes tão abertos. Há procedimentos de armadilhar o acto visual. Então, como na invenção plástica com que Ana Pais nos presenteia, o comportamento perceptivo pode tropeçar nos espaços ou densidades ilusórios: o erro estimula a mudança das convenções: maiores contrastes, perpendiculares e oblíquas, racionalidades que integram a reinvenção do visível. É neste patamar que a oficina  se transforma, apelando cada vez mais a um fazer pelo ver em mobilidade, em profundidade; porque, se o minimalismo se basta no sulco de um Fontana, o empenho na obra que soma níveis de expressividade torna-se de novo, e cada vez mais, urgente. Por vezes, quando tudo parece  completo, o olhar fixa-se no registo dos impulsos, ou das próprias pausas, e alguma desolação nos obriga a parar, a reflectir: sisifiano, o artista rola a sua condenação, assume a sua condição num ritual talvez um pouco estranho.

       Ana Pais Oliveira tem este zelo na persistência: através de técnicas que geometri-

zam e planificam a cor, os tons e as distâncias de uma arquitectura de suporte (até à sustentação final): então  o ver tridimensionaliza-se, reconstrói os estímulos, trata por vezes os erros numa relação de racords profícuos, obtendo consequências experimentais  de efeito intensamente sedutor. A impossibilidade de certas imagens se moverem, embora o indiciem a cada instante, obriga-nos a usar a percepção contra os actos da regra, integrando, por vezes, tudo em volta num diferente imaginário. Podemos trabalhar por tentativa e erro. E não será porventura o erro o mais raro suporte da descoberta de um novo horizonte. Muito cedo, na escrita gráfica da infância, os traços e as manchas, somando  os impulos da sensibilidade, concentram afinal os traços e as manchas a caminho da representação.  E então, na poética a gerar-se, o erro desfaz-se na beleza conquistada. Olhamos em silêncio esses “quadros”, uma casa que nos pertence e onde refazemos  a memória dos afectos, partidas e chegadas pelo tempo fora.

 

Pais Oliveira, Ana (2014), Sedução em Erro, texto para a exposição individual - Galeria S. Mamede, Lisboa, Abril 2014.

 

A expressão surgiu tão errada quanto surpreendente e, dado o contexto, foi uma invenção quase perfeita: numa aula de dança, há anos atrás, o nosso professor repreendeu o meu par, durante uma sequência coreográfica, afirmando que ele me estava a seduzir em erro. Como estávamos a dançar rumba, a dança da sedução, fiquei a pensar em como se podia falhar tão bem. Há, efetivamente, um conjunto de novas possibilidades e de definição de recomeços em cada erro ou no ato de falhar. Se o medo de falhar se aliar a uma ditadura de palavras, de ações, de comportamentos, intenções e mesmo desejos, a possibilidade para a liberdade perde-se no caminho, na tentativa de ser e fazer o que se pensa que está certo. Podemos pensar que tudo está feito, mas também que tudo está por fazer, num contexto de multiplicidade e de ausência de qualidades, conceitos e questões definitivas e irrepreensíveis.

Passados estes anos surgiu uma necessidade quase urgente de me apropriar deste episódio e do seu potencial metafórico para falar do meu trabalho de pintura.Percebi que a expressão continha, em si mesma e no modo como, à partida, falha e erra, duas questões fundamentais do meu trabalho, embora nunca antes evidenciadas: a capacidade ativa ou a tentativa de seduzir e o aproveitamento de um processo de tentativa e erro e de experimentação continuada para a construção da imagem. O elemento aglutinador destas duas questões é a cor como sujeito e como experiência, uma experiência física, prática, do ato de fazer e experimentar ou experienciar, de adicionar, enfatizar, anular e refazer, de aproveitamento efetivo e afetivo do erro, do problema e da incerteza, do uso da intuição numa plataforma de compatibilidade com um ciclo de pensamento/ação e informação/transformação. A cor, aqui, é pouco mais do que ela própria e, por essa mesma razão, determina o processo criativo, compõe o trabalho, orienta a sua gestão e construção, transforma significativamente o espaço, a paisagem e a gramática da arquitetura, servindo-se de um processo relacional para determinar os resultados perceptivos e de interpretação da imagem. Aliás, este interesse pelo potencial transformador da cor e pelo conjunto de relações e tensões a que a identidade da cor está sujeita surge como uma forma de confirmar um processo de valorização de uma experiência física e sensorial da obra, de sedução para o erro e de atração para o ato de falhar bem. Depois de várias soluções erradas, há sempre uma que valida todas as anteriores, que lhes atribuí significado e imprescindibilidade. Há um processo absolutamente condicional e interdependente em relação a um momento inicial, que pode ser uma mancha de azul intersectada por quatro linhas da geometria errada e disfuncional de uma casa vermelha. A casa é o lugar por excelência e é sempre usada, no meu trabalho, como elemento arquitectónico que reflete a fragilidade do ser humano: ela também vive e morre e a segurança que nos dá não é inviolável ou perene. No meu trabalho, a casa é desconstruída, impossível e quase sempre aberta, atravessada por elementos que perturbam a sua convencional funcionalidade, acentuando a ausência, o vazio e o silêncio. O espaço vazio e o silêncio são sempre pontos de partida para todas as possibilidades. Daqui parte-se para uma dicotomia entre espaço e lugar, sendo este um espaço onde se introduzem experiências, memórias, afectos, construções vivenciais e objetos. Podemos pensar se o que nos faz sentir em casa são quatro paredes, um contexto, as nossas coisas ou uma mera sensação de calor e conforto. Apesar de um crescente desenraizamento aos nossos lugares de eleição, numa procura apressada de qualquer coisa, a casa é sempre o nosso lugar, “o nosso canto do mundo”, como nos diz Gaston Bachelard.Nesta exposição, todas as casas podem ser as nossas e seduzem-nos para uma experimentação sensorial, física e afetiva de lugares que achamos que conhecemos e onde nos poderíamos sentir bem. Podem não existir, mas estão aqui. Sedução em Erro apresenta, assim, um conjunto de trabalhos onde a cor errada, que engana continuamente, que ilude e que é volátil, é o elemento visual e expressivo protagonista de objetos de pintura que, de algum modo, se apropriam de elementos da arquitetura ou que assumem uma mais evidente qualidade e dimensão arquitectónicas. Daqui surge uma intenção de distender a pintura para o espaço real, explorando distintos mecanismos de contaminação entre o espaço pictórico e o espaço arquitectónico, incorporando especificidades formais e estruturais da arquitetura em objetos que são sempre e primeiramente pintura. Na dicotomia entre espaço geométrico e espaço aberto da paisagem, ou na sua interação, existe um exercício de intertextualidade: a pintura cita a arquitetura, querendo igualmente sair dela própria através de uma expansão para um campo tridimensional, o que pode começar na definição do próprio suporte e no modo como cada um deles se relaciona com os outros e com o próprio espaço expositivo, diluindo fronteiras. Ao longo deste processo, a arquitetura pode traduzir-se num objeto de arte de pequena escala ou na orientação da obra de arte para uma escala arquitectónica, ocupando o espaço e convidando a uma experimentação física e interativa. Em todo o caso, pretendo pensar como relacionar espaço, escala, limites, matéria, construção e habitabilidade num mesmo objeto, manipulando estes conceitos através da intertextualidade da própria cor: a sua capacidade de ser e de se comportar de modos distintos em diferentes espaços e contextos, evidenciando uma vulnerabilidade intrínseca ao carácter mutável da sua expressão, organização, identificação e orientação. O discurso da cor constrói-se através da prática, da experiência e no ato de fazer coisas e, bem vistas as coisas, é possível fazer.

 

Ana Pais Oliveira

abril de 2014

 

 

 

Sousa, Rocha de (2014), Ana Pais Oliveira - A casa, entre o erro e a sedução, in Jornal de Letras, 14 a 27 de Maio de 2014, p. 24.

 

Mais uma oportunidade de aceder a novos autores, cada vez mais apetrechados numa aproximação da arte à ciência, apesar dos 'sensacionalismos' de alguns

para obter sucesso em pouco tempo. Ana Pais Oliveira (APO), que agora expõe em Lisboa, pertence à geração nascida dos anos 80, no seu caso, em Sandim,

Vila Nova de Gaia. Licenciou-se em Artes Plásticas/Pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, onde é doutoranda em Arte e Design. Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem exposto com frequência, incluindo no estrangeiro, e está representada em museus e universidades, entre outras instituições. Com prémios. Com uma significativa obra pública, publicada, no país e no estrangeiro.

 

EXPERIÊNCIA FÍSICA E SENSORIAL

 

Cada gesto com tinta sobre a tela, feito de acaso, não é um erro nem uma certeza. Essa ocasionalidade será uma deriva errática perante as normas da representação. Mas a repetição desse ato, contrário, quase cego, pode acrescentar efeitos sensorialmente positivos às manchas. Pintura gestual. Consagração estética de um quase acaso. A propósito de uma história de dança, APO escreve: "Há, efetivamente, um conjunto de novas possibilidades e de definição de recomeços em cada erro ou ato de falhar." Picasso falava, não sob o mesmo conceito, que "um quadro é uma soma de destruições". Nas artes, e nos seus tipos de pesquisa contemporâneos, o erro pode ser estrutural e sedutor. Por vezes, quando tudo parece completo, olhamos e o desânimo toma conta de nós. A percepção, tropeçando em diversas armadilhas, errando com frequência perpendiculares em linhas oblíquas, integra a reinvenção do visível. O real é contudo racionalizado a sua medida e orientação pelos favores do cérebro.

A artista, através de técnicas que geometrizam e planificam a cor nos quadros de uma arquitetura de suporte (até à sustentação final) tridimensionaliza o ver, reconstrói as oblíquas, usando por vezes erros de racord para obter consequências experimentais de efeito sedutor, apelativo. Trata-se de uma experiência que atravessa a incerteza e problematiza poeticamente a forma. A cor é ela mesma e o seu desdobramento, entre linhas que a conjugam em inefáveis sequências. O processo criativo desfaz certos indícios, ou fases, para reconstruir em erro o espaço, a terceira dimensão, as razões da cor.

Perto do que explica APO, o erro mostra acontecimentos ou coisas que nos surpreendem pelo seu inesperado teor poético, tanto nas artes plásticas como na escrita ou no cinema. A impossibilidade de certas imagens em movimento obrigam a perceção a suspeitos atos de regra, integrando-a, por vezes, num novo imaginário. Podemos trabalhar por tentativa e erro. Será porventura o erro que virá a suportar a tentativa conseguida.

Muito cedo, na escrita gráfica das crianças, os traços e as manchas, concentrando-se a caminho da repreentação, abrem muitas vezes a poética e o valor da fantasia, pelo erro à beleza conquistada. Olhamos em silêncio esses "quadros", a casa que nos pertence e onde refazemos a memória dos afetos, partidas e chegadas. Citemos de novo Ana Pais Oliveira. Diz ela, em jeito de conclusão: "Sedução em Erro apresenta, assim, um conjunto de trabalhos onde a cor errada, que engana continuamente, que ilude e  é volátil, é o elemento visual e expressivo protagonista de objetos de pintura que, de algum modo, se apropriam de elementos da arquitetura ou que assumem uma mais evidente qualidade e dimensão arquitectónicas."

A relação do espaço, pela casa e pela cor, importam ao interior da nossa interioridade.

 

 

 

Colour and the creative process in contemporary practices: connecting pictorial and architectonic languages through chromatic relations.  

Pais Oliveira, Ana (2013), Colour and the creative process in contemporary practices: connecting pictorial and architectonic languages through chromatic relations, Full Conference Proceedings of AIC Colour 2013, 12th Congress of the International Colour Association, Ed. The Colour Group, Great Britain, , Volume II, p. 489-492. (ISBN 978-0901623027).

 

Paper selected for oral presentation in the 12th AIC Congress, Newcastle, 11 July 2013.

 

Abstract

 

This paper belongs to a developing practice-based research on the use of colour as groundwork in the creative process of contemporary painting, analysing specifically its influence and significance in the artistic practice that somehow connects pictorial and architectonic languages, mainly in the field of expanded painting.

The study is a consequence of the author’s experience as a painter, whose work always privileged colour as an element that transforms spaces, their representations and the way we perceive, receive and experiment them. Besides an appropriation of architectonic language to pictorial space, the author is interested in expanded painting, where new possibilities of interaction between painting and the architectonic space, through colour, are explored. Moreover, the distension of painting to real space causes new preoccupations with the relation between colour and space and between the spectator and the perceived work, a relation that can be more physical and interactive.

The research aims to conduct a reinterpretation and contextual redeployment of the act of composing and creating through colour in artistic contemporary practices, emphasizing the cases of artistic works that represent an abolishment of the frontiers between painting and architecture. It is a fundamental objective to explore, experiment and analyse the transformative potential of colour in those projects. Considering the experimental component of the investigation, the results will be inherent to the artistic practice and to an unavoidable circuit between thinking and action. The practical experimentation, in the studio, should be complemented with a contextualisation and theoretical framing, and also with the knowledge of what artists do, currently, within these concepts and approaches.

This will lead to a necessary analysis of the distinct possibilities of dialogue between painting and architecture, through colour, in contemporary practices, such as: architectonic representations in painting; creation of pictorial objects with an architectonic dimension, like constructions that we can physically explore and contour; painting made directly in architectonic space or exhibition room, where colour can determine the building’s impact in the surrounding area, as a skin of the construction that assumes autonomy from its structure and functionality.

The discourse on colour is often fragmentary, divergent and inconclusive, which is transversal to distinct knowledge areas. Mainly when it is constructed in an artistic context, the colour subject is fundamentally approached and though in the act of doing things and through practice. In studio art investigations the concepts of investigation and creation tend to merge and be contaminated, so it is based on this assumption that this paper pretends to approach colour subject through the artistic object.

It is an expected result the development of a final exhibition project that will include the artistic objects that better represent the carried investigation. Colour entropy, reflected in the concepts of order, chaos, dynamics, flow, balance and composition inherent to chromatic relations, should be identified and applied within the relation between those objects.

This paper intends to display the artistic investigation that has already been done, the analysis of the selected artists whose work approaches the fundamental issues of the research and future expectations.

 

 

El Color y el proceso creativo en las prácticas artísticas contemporáneas: la conexión entre lenguajes pictóricos y arquitectónicos a través de las relaciones cromáticas

Pais Oliveira, Ana (2013), El Color y el proceso creativo en las prácticas artísticas contemporáneas: la conexión entre lenguajes pictóricos y arquitectónicos a través de las relaciones cromáticas, Conference Proceedings of X Congreso Nacional del Color, Universitat Politècnica de Valencia, ed. Ángela García Codoñer, p. 86-87 (ISBN 978-84-9048-058-8).

 

Paper selected for Poster Presentation at X Congreso Nacional del Color, Valencia, 27 June 2013.

 

 

Resumen

 

Este artículo se centra en una investigación en curso sobre el uso del color como base en el proceso creativo de la pintura contemporánea, analizando específicamente su influencia e importancia en la práctica artística que de alguna manera conecta lenguajes pictóricos y arquitectónicos, principalmente en el campo de la pintura expandida.

El resultado de esta  investigación es  consecuencia de la experiencia de la autora como pintora, en cuya obra siempre  prima el color  como un elemento que transforma los espacios, sus representaciones y la forma en que percibimos, recibimos  y experimentamos con  ellos.

Además de una apropiación del lenguaje arquitectónico con el espacio pictórico, la autora se interesa por la pintura expandida, donde las posibilidades de interacción entre la pintura y el espacio arquitectónico, a través del color, se exploran.

Por otra parte, la distensión de la pintura en el espacio real, provoca nuevas preocupaciones relacionales entre el color y el espacio y entre el espectador y la obra percibida, una relación que puede acrecentar ser más físico e interactivo.

La presente investigación tiene como objetivo llevar a cabo una reinterpretación y  redistribución del contexto del acto de componer y crear a través del color en las prácticas artísticas contemporáneas, con un especial énfasis en los casos de obras artísticas que representan una disolución  de las fronteras entre la pintura y la arquitectura. Es el objetivo fundamental para explorar, experimentar y analizar el potencial transformador del color en esos proyectos.

Teniendo en cuenta la parte experimental de la investigación, los resultados son inherentes a la práctica artística y mantienen un circuito  inevitable entre el pensamiento y la acción. La experimentación práctica, en el estudio, se debe complementar con una contextualización y el marco teórico bien definido, apoyado también con el conocimiento de lo que hacen los artistas, en la actualidad, dentro de estos conceptos y enfoques.

Esto nos conduce un análisis preciso de las distintas posibilidades de diálogo entre la pintura y la arquitectura, a través del color, en las prácticas contemporáneas, tales como: las representaciones arquitectónicas en la pintura; la creación de objetos pictóricos con una dimensión arquitectónica, como construcciones que físicamente pueden explorar  el entorno;  pintura hecha directamente en el espacio arquitectónico o salas de exposiciones, donde el color  puede determinar el impacto del edificio en los alrededores, como la piel de la construcción que supone la autonomía de su estructura y funcionalidad.

El discurso sobre el color es a menudo fragmentario, divergente y no concluyente, pero no cabe duda que es transversal a  áreas de conocimiento distintas. Sobre todo cuando se construye en un contexto artístico, el tema del color se aproxima, aunque fundamentalmente consista en la práctica y en el acto de confeccionar elementos artísticos.

 En las investigaciones y  estudios sobre arte, los conceptos de investigación y creación tienden a fusionarse y a  contaminarse, por lo que se basa precisamente en esa suposición el abordaje del estudio del color a través del objeto artístico.

El resultado esperado  es el desarrollo de un proyecto de exposición final que incluirá los objetos artísticos que mejor representan  la investigación realizada. La entropía del color, que se refleja en los conceptos de orden,  caos,  dinámica, flujo, equilibrio y la composición inherente a las relaciones cromáticas, debe por ello  identificarse y aplicarse en las relaciones entre esos objetos.

Este trabajo pretende mostrar la investigación artística que ya se ha realizado, el análisis de los artistas seleccionados previamente, cuyo trabajo aborda las cuestiones fundamentales de la investigación y las expectativas futuras de este proyecto.

 

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